novembro 01, 2012

Fichamento da obra
"Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade" de Judith Butler 
(Rio de Janeiro: CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2003) Tradução de Renato Aguiar

(Atividade elaborada para fins de avaliação parcial da disciplina "Arte e Feminismo: Primeiros Estudos" do curso de Direção de Arte da Universidade Federal de Goiás, sob orientação da Profa. Ms. Talita Trizoli)



É pouco sensato postular verdades acerca de temáticas tão peculiares e inerentes ao ser humano como as problemáticas de gênero. Seus conflitos internos e/ou correlativos vão de sua simples definição até sua contestável legitimidade. Essa pequena resenha ilustra uma leitura primária (e inevitavelmente superficial) da obra de Butler que, sem dúvida, nos instiga a um mergulho mais profundo no desdobramento dessas problemáticas.   

Janaína Viana


capitulo I

Sujeitos do sexo/gênero/desejo


1º Mulheres como sujeito do feminismo

Inicia-se com um questionamento acerca da identidade fixa e representativa do movimento feminista. Onde estaria o limiar entre os benefícios de uma representação universal e categórica do gênero (enquanto convenção que é) feminino - na qual o feminismo busca se debruçar – e a partir de que momento essa representação político/social/ontológica torna-se exclusivista e segregatícia  Em outras palavras, ao se sujeitar a noções estáticas de gênero, em prol de uma suposta representação política, o feminismo acaba por entrar em conflito com seus próprios ideais de subversão de uma identidade generalizada e pré-moldada.

2º A ordem compulsória do sexo/gênero/desejo

Butler sugere que o argumento da sexualidade binária, assegurada por uma teoria pré-discursiva, é uma mera forma de validação e regulação das estruturas sexuais já instituídas  A autora trás à tona questionamentos sobre a relação conflituosa entre sexo e gênero, ora expondo como a dualidade universal macho/fêmea sugere padrões de gêneros tão impostamente definidos que chegam a assumir um caráter ''heterossexual compulsório'', ora argumentando como as peculiaridades culturais, supondo uma ausência dessa imposição binária, possibilitaria ao individuo transitar entre as classificações de gênero.

3º Gênero: as ruínas circulares do debate contemporâneo

Pensemos na relação entre o indivíduo e seu gênero, se supormos que o segundo seja um reflexo constante de influências culturais espontâneas, ele acabaria por tornar-se tão dogmático e intolerante quanto a própria sexualidade. Creio que exista de fato, um relação direta entre sexo e gênero, sendo essa relação anterior ao contexto pré-discursivo, dando vazão a características instintivas próprias do seu humano. No entanto não pode-se deixar de levar em conta a suposta construção social na qual o gênero é compreendido.  A partir disso, pergunta-se: se o gênero pode ser (e o é) mais do que uma mera continuidade lógica do sexo, como ele é, de fato, concebido?

Beauvoir posiciona as mulheres como reflexo do homens, intitulando-as “o Outro'' (gênero), legando a ausência de gênero no masculino, apontando-o como pessoa universal. Em uma disputa subjetiva pela própria ''pessoalidade'' o feminismo humanista alega que o gênero deveria ser compreendido como uma atributo do ser universal, tornando-se uma característica secundária e opondo-se a ideia de que a própria noção de pessoa seja subjugada ao gênero.

4º Teorizando o binário, o unitário e o além

Instaura-se novamente o debate a cerca da complexabilidade de se configurar uma identidade tipicamente feminina. A tentativa de organizar e unificar as mulheres em uma ''categoria'' generalizada, trás à tona a discussão do conceito falocêntrico que agrega-se ao emprego do termo ''incluir'', onde pressupõem se que haja de antemão uma cultura dominante e completa (masculina). Boicotando de forma claramente agressiva toda a diversidade possível ao gênero feminino.

5º Identidade, sexo e a metafísica da substância

Butler investiga a identidade enquanto reflexo primário do gênero, questiona-nos se a identidade baseia-se de fato em uma conjuntura acumulativa de experiências reais e peculiares, ou compõem-se de ''sugestões'' normativas pré-concebidas. Em outros termos: são as pessoas e suas idiossincrasias que compõe o meio, ou é o meio (normativo e rígido) que se ocupa de produzi-las? (incluindo seu gênero). Essa segunda opção, se apoiando no conceito binário tradicional do gênero, exclui e marginaliza todos os demais ''estilos'' e comportamentos alternativos que não se reconhecem nessa dicotomia, que, nas palavras de Butler, são aqueles que não apresentam “coerência e continuidade entre sexo, gênero, pratica sexual e desejo”. A sujeição da identidade ao gênero (e conseguintemente ao seu sexo) é tamanha que pode ser denunciada dentro da nossa própria estrutura linguística, onde ''ser mulher'' ou ''ser heterossexual'' são afirmações que esboçam a própria identidade.
Butler sugere ainda que a premissa de uma suposta heterossexualidade compulsória, seja mais uma postura falocêntrica que implique na sujeição do gênero feminino ao masculino. 

6º Linguagem, poder e estratégias de deslocamento

Wittig, por sua vez, também sugere que o desejo heterossexual é induzido e compulsório, sendo reflexos de “marcações preliminares” postuladas por uma “formação imaginária” logicamente binária, e afirma que, uma vez livre dessa estrutura dual e normativa, o desejo assumiria uma postura naturalmente aberta, “livre” e ilimitada.
Creio que possamos dizer que Wittig, apesar de sua postura radicalista, não “condene” por completo o estruturalismo linguístico (como faz Beauvoir), mas apenas suas interpretações assumidamente masculinistas. Enquanto Irigaray, por outro lado, negue qualquer possibilidade de equivalência linguística entre os gêneros, não só restringindo exclusivamente essa estrutura a esfera do masculino, mas apontando-a como ferramente misógina.
Butler aponta um questionamento interessante acerca da validade das teorias de liberdade sexual de Wittig, “Que possibilidades existem de ruptura do próprio binário oposicional?” Sugere-se que a heterossexualidade compulsória seja decorrente de “proibições” (históricas) incitadas inicialmente pela condenação de relações incestuosas.
Em algum momento parece assumir-se uma certa frustração dos ideias de uma possível “liberdade fálica” a qual o feminismo parece propor-se, chega-se ao consenso de que a sujeição do gênero as relações de poder parece não ser estritamente sexual. Nas palavas de Butler: “O retorno a biologia como base de uma sexualidade ou significação específicas femininas parece desbancar a premissa feminista de que a biologia não é o destino. Porem, quer a sexualidade feminina se articule aqui num discurso da biologia por razões puramente estratégicas  quer seja de fato um retorno feminista ao essencialismo biológico, a caracterização da sexualidade feminina como radicalmente distinta da organização fálica de sexualidade continua problemática” No entanto, logo mais afirma não se tratar de nenhum ”projeto fracassado de criticar o falocentrismo ou a hegemonia heterossexual”, deixando clara a dificuldade de conceituação e consenso acerca das várias matizes emergentes que dizem respeito a inteligibilidade cultural do gênero.




capitulo II
Proibição, psicanálise e a produção da matriz heterossexual


Diante de uma possibilidade histórica que aponta o patriarcado não como naturalmente legítimo, mas como historicamente intitulado, as causas feminista buscaram expor um tempo em que a organização dos seres humanos se desse de forma não patriarcal. Essa teoria,  no entanto, fosse ou não validada, chocaria-se com com as perspectivas feministas que traçar o percurso cultural complexo pelo qual a construção do gênero se daria. Buscar conhecer como o sexo, supostamente, transforma-se em gênero tente abrir alas não somente para a compreensão dessa hierarquização entre os gêneros/sexo, mas também emergir um apontamento sobre a manifestação da opressão (masculino/feminino) em termos mais amplos.

1º A permuta crítica do estruturalismo

Lévi-Strauss em seus estudos estruturalistas aponta que a normativa do comportamento (hétero) sexual baseia-se na lei primária que postula o tabu incestuoso entre mãe e filho, - valendo-se de forma absolutamente presunsoria da masculinidade desse desejo (do filho para com a mãe) -, sendo esta a premissa cultural da proibição endogâmica  Assim sendo, buscaria-se então estabelecer relações, que Butler aponta com hegelianas (“Isto é, distingue e vincula ao mesmo tempo”), onde a assimetria social do gênero aparece de forma escancarada. Essas relações, patriarcalistas e patrilineares, se dão estritamente entre homens [chamadas homosociais] onde fica-se claro a posição não compatível em que as mulheres se situam, sendo estas tidas (de forma claramente objetivada) como símbolos ritualísticos de troca, oficializada pelo casamento. Em outras palavras, a mulher é o simbolo que propicia (e possibilita sua manutenção através da procriação) dessa relação estrita entre homens, um exemplo claro é a forma como a mulher é sujeita a alteração do sobrenome após o casamento [passa-se a ser “propriedade” de outra pessoa].

2º Lacan, Riviere e as estratégias da mascarada

A teoria lacaniana sugere que a identificação feminina se instale em uma relação diretamente fálica, ele situa as mulheres em uma posição de “ser” o falo, em contrapartida ao masculino que “tem” o falo. Em outras palavras, o feminino existe como “falta” para pressupor a existência do masculino (fálico). Nas palavras de Butler (pressuposto a teoria lacaniana) “Para as mulheres, ser o Falo significa refletir o poder do Falo, significar esse poder, 'incorporar' o Falo, promover o lugar em que ele penetra e significar o falo (…) é a confirmação dialética de sua identidade”.
Isso, conseguintemente, leva o feminismo a uma busca para desmistificar a centralização do desejo feminino em uma economia fálica. Por meio do que chamou de mascarada, Lacan afirma que as mulheres suprimem seus ímpetos pré-existentes, “rejeitando uma parcela essencial de feminilidade” para personificar um “desejo do Outro”, nas palavras de Lacan: “É pelo que ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada.” A partir disso ele ainda intitula o desejo homossexual feminino como um reflexo frustrado do desejo heterossexual, dessexualizando a lésbica (não podemos deixar de levar em conta os referências heterossexuais masculinos
que inauguram essa opinião, possivelmente podendo ilustrar um reflexo que o heterossexual sofre em relação a sexualidade lésbica).
Segundo Riviere, essa “orientação” sexual (hétero/homo) tem sua necessidade de manifestação na tentativa de eliminar a “angústia” [creio eu que tratando-se de uma esfera existencialista] e apontam, a mascarada feminina como uma tentativa de conter a essência masculina (ou conter o falo) em outras palavras, o desejo heterossexual feminino é uma manifestação de uma ambição à masculinidade, no entanto de forma não declarada (mascarada). Butler nos sugere que “uma interpretação possível é a mulher na mascarada deseja entrar no discurso público com homens”. Aprofundando-se, Heath, seguindo a linha de pensamento de Riviere, diz-nos que a libido é um reflexo tipicamente masculino, e que sua manifestação no contexto feminino não é genuína. Chega um momento, no texto de Butler, em que se acredita que toda a sexualidade possível é oriunda do desejo/libido que é estritamente masculino, seja por meio da mascarada, nas mulheres heterossexuais, ou do homossexualismo masculino [que parte que uma postura feminilizada que a mulher “é” o Falo, e por isso representa o seu poder enquanto objeto de desejo do homens, que por sua vez “possuem” o Falo, (dessexualizando assim a lésbica(?))]. Fala-se ainda de um cisão que, supostamente, estabelece essa dualidade dos sexos, e que uma vez evitada revelaria a verdadeira bissexualidade inerente aos seres humanos.

3º Freud e a melancolia do gênero

Freud aponta como a manifestação da melancolia está ligada a construção do caráter (e assim do gênero). Ele sugere que a perda de um suposto objeto de desejo faz com que o ego sucumba esse mesmo objeto dentro de si mesmo, fenômeno que ele chamou de internalização. Ele nos faz crer que essa é uma tentativa do ego de impedir a ruptura absoluta com esse mesmo objeto, “Assim, refugiando se no ego, o amor escapa a aniquilação (178)”. Essa perda sofrida pelo ego, se dá a partir do momento que as relações incestuosas são validadas como tabu e elevadas a um status de proibição. Ele afirma ainda que essa perda esta internamente ligada com a “escolha do objeto”
e partir de então tem relação direta com a sua orientação sexual [Butler não usa esse termo] e sua identificação enquanto gênero.
Em algum momento de seu discurso, trazendo à tona conceitos do complexo de Épido, Freud aponta que é menos a repressão de um desejo sexual pela mãe - reprimido pelo tabu do incesto, do que uma suposta repressão (cultural) ao homossexualismo. Nas palavras de Butler “o tabu contra a homossexualidade com efeito cria as 'predisposições' heterossexuais pelas quais o conflito edipiano torna-se possível”. Alegando, porem, uma possível bissexualidade primária, mas que, no entanto, parece não se manifestar de forma clara nestes contexto, tida como “fator complicador do processo de formação do caráter e do gênero”. Voltando ao complexo de Édipo, Freud afirma que a partir de um posicionamento do pai como rival e da identificação com a mãe (oriunda da proibição do desejo incestuoso), observa-se um repúdio em relação a mãe, trazendo a “consolidação do gênero”.

4º A complexabilidade do gênero e os limites da identificação

Muitas convergências são encontradas entre as teorias que discorrem sobre a identidade do gênero. Enquanto Lacan supõem uma teoria dual e rígida do binário entre “ser” e ”ter” o falo, as teorias psicanalíticas levantadas por Freud, tendem a ser um pouco mais abrangentes na obtenção dessa identidade do gênero, e embora a lei paterna, que ilustra essa teoria, não seja absolutamente validada parece ser menos limitada, e com isso mais aceita, que o conceito dual lacaniano.
Neste capítulo Butler nos apresenta a teoria da “incorporação”, onde argumentam que essas estruturas de gênero talvez sejam menos inerentes ao ser humano e mais uma “apropriação” que o corpo é induzido a fazer dessas estruturas específicas, “é a incorporação que denota a resolução mágica da perda, que caracteriza a melancolia”. Em outras palavras, o “vazio” que supõem-se do recalcamento materno (responsável pela melancolia) é absorvido pelo fenômeno da incorporação, trazendo ao corpo a possibilidade de “suportar um 'sexo' como sua verdade literal”.
Irigaray, apoiada em teorias freudianas, afirma que o repúdio materno gera uma “dupla onda” de recalcamento na identidade feminina, uma vez que não vale-se apenas da perda do objeto, como nos casos de natureza heterossexual, mas na perda do objeto e do objetivo, uma vez que sofre influência também do tabu do homossexualismo. Afirmando assim, que “a melancolia é uma norma psicanalítica para as mulheres” [tendo a melancolia como característica reflexo do repúdio materno].
Butler nos mostra que uma imposição cultural mantém nossa heterossexualidade validada, e que muitas vezes, seu reconhecimento só se dá através de uma negação/repressão de impulsos homossexuais primitivos. Citando-a: a homossexualidade masculina renegada culturalmente culmina numa masculinidade acentuada e consolidada. Acredito que observação também seja válida ao gênero feminino.


5º Reformulando a proibição como poder

Num capitulo conclusivo Butler correlaciona as teorias da formação da identidade de gênero e aponta como o discurso psicanalista tem atraído o pensamento feminista. Apresenta-nos Gayte Rubin, autora de um importante artigo da cena feminista, que vem reforçar a ideia de heterossexualidade compulsória [o que eu chamaria talvez de heterossexualidade induzida], mas enfatiza que o tabu do incesto (que carrega o legado da heterossexualidade compulsória) em nenhum momento reprime o que poderia ser tido como uma predisposição primária, “cada criança contém todos as possibilidades acessíveis a expressão humana(189)”, ela diz.
Ao que me parece, na tentativa de apontar uma sexualidade anterior a lei (uma suposta “bissexualidade primária ou um polimorfismo ideal e irrestrito”) termina-se por constatar que esse mesmo apontamento ocupa-se em criar essa lei. Em outras palavras, na tentativa de expor uma situação sexual anterior as leis da proibição chocamo-nos nas nossas próprias impossibilidades de de compreender esse contexto, uma vez que se refere a um tempo passado que é além dos nossos domínios linguísticos, e acaba por fim, enfatizando mais uma vez a lei que procurava-se subverter.
Partindo disso, Rubin nos fez crer que a própria postulação do incesto como tabu tem uma finalidade reguladora, segundo ela a mesma força que faz crer que há de fato um recalcamento (que por sua vez gera a melancolia e constrói o gênero) é também a força que induz esse mesmo desejo, adquirindo em função disso seu caráter aparentemente legítimo. Para Rubin, o gênero é nada mais que “uma transformação cultural de uma polissexualidade biológica em um heterossexualidade comandada”. 


capitulo III
Atos Corporais Subversivos